segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Sobre quem vai.

                         O barulho enferrujado e antigo que a porta fazia quando ele entrava, só fazia com ele. Os sapatos marchando escada acima, sem ver, ela já sabia que calçavam os pés dele. A discussão pelo controle remoto, cujo fracasso dela sempre era anunciado com um sorriso quase perverso, só existia com ele. O chuveiro pingando daquele jeito, só ele conseguia deixar. Os pães mais branquinhos pra ela, só ele se esforçava pra guardar. Os seus dedos, irritantes, estalando, só o olhar dele sabia calar. O perfume bom, só ele sabia dosar. Os ruídos todos, que ninguém mais faz, os cheiros todos que ninguém mais exala, causam medo aos seus ouvidos e nariz, que nunca entendem de esquecimento.


                      Havia algumas contas a serem pagas e uma breve viagem marcada. Havia comida na geladeira para o jantar e roupas sujas do futebol de domingo, bagunçando a área de serviço.  Havia um silêncio cúmplice no lugar desse deserto mórbido em que a sala se transformou. Por enquanto, não há mais nada. Os sentidos dela ainda se aguçam, mas murcham perplexos com os gritos da ausência. Será assim por enquanto. Não haverá mais brigas, nem esperas, nem divisões. O café vai esfriar enquanto ela gira a xícara com o dedo indicador, a louça vai tomar a pia e a poeira, todo o espaço. Haverá poeira nos livros, no controle remoto, haverá poeira na cama, e no coração. Haverá poeira enquanto não houver tempo suficiente. E talvez nunca haverá.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Diálogo

                        O corredor tava mais comprido do que o normal. É sempre assim quando eu tenho pressa. O toc toc frenético e proibido dos meus sapatos deve ter te chamado a atenção. Frente a frente, e quase dentro daquele abraço que você insiste em me afogar, te ouvi: “Oi. E aí, tudo bem?”. Puxei o ar pra dentro do peito, pressionei levemente os lábios, dei uma longa piscadela e arrisquei: “É uma pergunta retórica ou você quer mesmo saber?”. Te peguei de surpresa. Por educação, você disse: “Quero mesmo saber, oras”. Era mentira, mas eu ignorei. Engoli a saliva gelada, como quase todo o resto do meu corpo e, com a respiração descompassada, lancei: “Na verdade, não está tudo bem. Não está bem porque não aguento ter tanto pra te oferecer. Se você soubesse o quanto eu quero te fazer bem, não agiria com essa displicência. Eu te enxergo devagar enquanto um monte de gente de olha correndo, e, cá entre nós, até meio maluco te acham. Eu entro na tua maluquice e consigo achar ela fofa. Eu poderia te ouvir por dias sem sequer olhar para o celular. Só que eu vejo a gente indo embora um do outro sem nem ter conseguido chegar e só consigo lamentar profundamente por isso. Porque eu quero te encontrar! Não assim, pelo corredor, mas encontrar aquilo que até você mesmo vem procurando, e quero deixar que me procure também. Se você acha que eu to viajando, por favor, fala alguma coisa. Eu vou te deixar ir e aceitar todos os teus motivos, mas você vai precisar parar de me confundir. Eu queria que você ficasse, mas não to te pedindo isso. Só quero que você deixe as coisas mais claras; é algo que venho querendo fazer na minha vida e na vida dos outros: clarificar. Sem adivinhações, sem penumbra. Só quero o que é bom e de verdade, porque é o que eu tenho nos bolsos pra te dar. Espero que você não demore pra entender tudo isso e venha logo. Ou siga em frente de uma vez. Só não fique no meio do caminho, por favor. É isso. E contigo, tudo bem?” (...) 
               Você continuava na minha frente, escondido atrás dos óculos e com aquele sorriso tímido refletido em mim. Tornou a perguntar: “Tudo bem?”. Acordei do sopor, puxei o ar pra dentro do peito, pressionei levemente os lábios, dei uma longa piscadela e disse: “Tudo. Tudo certo. E contigo?”. “Também, tudo certo.” “Então tá, até mais.” “Até”. E retomei o corredor sem fim. 

domingo, 15 de junho de 2014

ZzzzZzz

                            Usei a backspace algumas vezes. Corrigi minhas sinceridades; enfeitei a verdade pra te entregar mais bonitinha do que quando você me emprestou.  Mas eu tenho que te dizer: Eu fiquei com preguiça de continuar. Preguiça de pensar em ti e até de te escrever. Estas talvez sejam as últimas palavras ditas por mim, das quais você é dono. Tem sido tedioso te buscar todos os dias pra dentro da minha cabeça. Era divertido até agora a pouquinho, enquanto colocávamos nossas luvas de pelica para mais um round. Mas você sempre vence porque eu sou uma péssima jogadora. Você lança suas teorias sobre mim, eu não concordo, mas aceito te ter por perto, mesmo assim. 
                              Percebi que os sopros que nos oferecemos para encher nossos egos é o que nos mantém próximos. Mas agora tem me faltado ar. Eu sinto muito, de todo coração, que você tenha pensado demais sobre isso; não teria te contado tudo o que eu sentia. Minha razão lamentou o meu descuido e espero que você me perdoe e que meus sentimentos não pesem tanto... Mas eu tinha que devolvê-los, sabe? Estavam ocupando muito espaço mesmo não sendo tão grandes. Não são grandes, mas desajeitados. Desajeitados feito as muletas que somos um para o outro. Precisamos aprender a caminhar sozinhos, do jeito que você gosta, mas não sabe ser. 

sábado, 31 de maio de 2014

Por falar em saudade.

Eu também quis fazer poesia com a saudade, mas dessa vez ela não era dramática, não sangrava. Dessa vez, ela ficou com vergonha das minhas mil atividades diárias e resolveu não exigir muita atenção. Percebeu-me sem muito tempo para nos relacionarmos. Dessa vez, a saudade se colocou, enfim, no seu lugar: ela dançou as nossas músicas, surfou nos cheiros, riu daquela ode que fizemos juntos, constrangeu-se com as fotos antigas, preencheu o espaço entre o apagar da luz e a chegada do meu sono. Quando ensaiou doer, e exercer assim sua principal função, obedeceu-me sem pestanejar. Não usou meu celular, não colocou palavras na minha boca, não jogou confete em nenhum silêncio e não fez brigadeiro. Ela estava só, e só. Foi elegante, uma verdadeira dama, nada de histerias e efusividades, um poço de sensatez! Preocupo-se comigo, na verdade. Eu, agradecida, diante de tantas ausências, dessa vez, fiz questão da sua presença. Dessa vez.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Calça curta.

Acho graça de mim cada vez que tu chegas. Se tu olhas, eu desvio, quase entro no freezer cheio de Coca-Cola; encontro qualquer coisa pra tentar empalidecer meu rosto novamente e dissolver o constrangimento rubro que me pinta. Quando tu te distrais, eu te recorto inteiro, e embaço o fundo pra te ver melhor. Quando percebo, já to rindo sozinha do teu cabelo desajeitado, e dos teus pés que andam em direções opostas. Também acho graça da maneira que tu falas, confesso. Mas eu sempre ignoro; ignoro porque não ouço mais a forma quando ela se faz em conteúdo educado e simpático... E lá vou eu te colocar de novo no meu sorriso idiota. A tua pele também já foi alvo da minha admiração. Ela fica rosa quando é frio demais, ou quando é calor demais. Mas quando abraçou teu colega, eu nem reparei de que cor tu ficaste, eu só vi o abraço. Se eu pudesse, te diria pra não usar mais aquela camisa verde. Eu a notei logo de cara, mas ela sumiu quando você foi gentil com aquelas pessoas que estavam ao teu redor, e quando tu, sem saber, me deixaste passar na tua frente na fila da lanchonete. A verdade é que eu te admiro antes de te amar e isso sim é um terreno perigoso. De amor eu dou conta, engulo, mastigo... Mas admiração me pega de calça curta. Por favor, não seja mais tão legal. Se puder, peça pra alguém falar mal de você pra mim, quem sabe assim deixo de calcular teus horários pra te encontrar.  Sorria menos também, tá? Não me cumprimente mais mesmo sem me conhecer. É cansativo pra mim. Sinto um pouco de raiva de ti por isso. Mas de raiva eu dou conta, engulo, mastigo... a admiração é que me pega de calça curta. 

domingo, 6 de abril de 2014

Dos nossos excessos.

                     Falei mil vezes sobre as nossas diferenças querendo encaixar um pouco de curiosidade na gente. Fracassei. A verdade é que precisei, enfim, reconhecer o acordo tácito que fizemos, desde o começo, sobre as semelhanças inúteis que temos. Nunca poderemos firmar um tratado de completude, de somar com aquilo que tens demais, para aquilo que me falta. Tudo que me sobra, esparrama de ti também. Aí a gente fica com mãos sujas da gente mesmo, e corre, um do outro, porque não tem nada a acrescentar. Tudo que eu poderia te dar, tu faz doação em campanha, porque já não tem onde guardar. Tudo que tu terias pra presentear a minha vida, eu deixo apodrecer em sacolas na despensa de casa, numa oferta que sobrepõe a procura e barateia nossa permanência na vida um do outro. Talvez por isso tua ausência me soe tão presente, ela sim faz sentido. Somente quando não estamos juntos tu me acrescentas alguma coisa. A saudade que sinto me faz melhor e oferece a única coisa que não tenho de ti: tu mesmo. Quando tu estás, eu me farto de tanto nós. Encho das nossas sandices e saio cansada como um moleque ao fim de um dia de praia. Quando tu não estás é que finalmente tu te apresentas na minha vida de maneira mais cheia de paz. Quando tu não estás eu não preciso te entender, nem me cansar, nem transbordar. Quando tu não estás eu tenho o melhor de nós. Eu gosto de perceber tua ausência, é a maneira que o mundo encontrou de nos deixar juntos sem causar danos, já que de outra forma a gente explodiria por excesso. Por excesso de dor. Por excesso de alegria.